quinta-feira, 31 de março de 2016

HELENA VASCONCELOS


Hoje na Sábado escrevo sobre Não há Tantos Homens Ricos Como Mulheres Bonitas Que os Mereçam, de Helena Vasconcelos (n. 1949). Radiografar a contemporaneidade pelo crivo do imaginário de Jane Austen não é para todos. Mas a autora arriscou e o resultado é uma obra peculiar, de recorte envolvente. O título adopta uma das frases-chave de Mansfield Park. Dividido em três partes, os Livros I, II e III, o romance confronta a actualidade com as idiossincrasias da Era Austeniana. Não o faz por artifício. Trata-se de pôr em pauta o lugar da mulher na sociedade. Com desembaraço, Helena Vasconcelos faz um tour d’horizon ao universo de Austen, estratagema que ajuda a fixar o retrato de Ana Teresa, heroína apostada em «valorizar a sua própria banalidade». Não é inocente que Ana Teresa, sendo portuguesa, tenha origem estrangeira. Nem surpreende que essa circunstância sirva para sublinhar temas como género e identidade, centrais ao ensaísmo de Helena Vasconcelos. O facto de Ana Teresa viver longe dos pais (cada um em seu país), e ter sido criada a partir dos dez anos pela avó paterna, Marianne DeWelt, mulher de convicções fortes e hábitos permissivos, faz dela, na segunda década do século XXI, uma outsider da Lisboa convencional das Avenidas Novas. Aqui chegados, já o leitor estabeleceu pontes com o legado de Austen, feminista avant la lettre que escreveu sobre o quotidiano daquela parcela do mundo que, ao mesmo tempo que preservava o equilíbrio do tecido social, escapou à devastação napoleónica. A autora calibra o plot com a naturalidade e a segurança de quem relata uma história linear. Ora o romance de Helena Vasconcelos será tudo menos linear. Veja-se como do Livro I para os seguintes o tempo da narração sofre uma forte guinada. Afinal, nem tudo é como na pacata Steventon. Verdade que a clave irónica da close reading austeniana transforma o livro em obra aberta, pós-modernista em sentido amplo. Drible perfeito: com material na aparência “fútil” se fez um belo romance de ideias. Nada de confusões com a empáfia indígena que todos os dias presume ter descoberto a roda. Cinco estrelas.

Escrevo ainda sobre A Mulher, de Meg Wolitzer (n. 1959), nome de culto da ficção contemporânea americana. Neste caso, a mulher significa “mulher de”. Trata-se de nova tradução de um livro publicado há vários anos. Com Os Interessantes, de 2014, quem não conhecia a autora ficou ciente de uma escrita sarcástica não isenta de humor. A Mulher, de 2003, corrobora a consistência da obra desde os primórdios. Sentada na primeira classe de um avião, Joan decide deixar Joe, o professor de cabelo preto despenteado por quem se apaixonou, o marido que tenciona deixar. Está emborrachada mas sabe o que quer. Joe Castleman vai a Helsínquia receber um prémio literário, e Joan cansou-se de ser “a esposa”. Teve graça enquanto foram amantes (ele era casado no tempo em que ela foi sua aluna), agora a relação estiolou. Podia ser o guião de uma soap, mas Wolitzer é uma escritora de mão cheia, dominando bem todos os recursos expressivos. A ironia é de regra. Sobre outra mulher: «O seu cabelo era da cor de um envelope almofadado». Acerca do milieu literário há comentários de antologia. A ler. Quatro estrelas. Publicou a Teorema.