quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

ANNEMARIE & TEOLINDA


Hoje na Sábado escrevo sobre Todos os Caminhos Estão Abertos, de Annemarie Schwarzenbach (1908-1942), escritora e fotógrafa suíça, mas também arqueóloga, autora que tem sido tratada com indiferença pelos editores portugueses. Todos os Caminhos Estão Abertos, agora publicado, parece-me ser o segundo dos seus livros traduzido em Portugal. Em 2008, a Tinta da China publicou Morte na Pérsia, mas continuam por traduzir muitos títulos. Nem o facto de Annemarie ter vivido em Lisboa em 1941 (era então casada com um diplomata francês), ano em que a cidade foi ponto de passagem dos judeus em fuga do nazismo, suscita interesse de maior. Verdade que Annemarie é hoje uma figura de culto à margem da obra literária. A origem aristocrática, a beleza andrógina, a militância anti-fascista, as ligações amorosas com mulheres célebres (entre outras, Carson McCullers e Erika Mann), as histórias associadas às viagens que fez aos Balcãs, Turquia, Pérsia, Palestina, Iraque, Índia, etc., as expedições arqueológicas, as reportagens fotográficas da Grande Depressão americana, as tentativas de suicídio, a dependência da morfina e, last but not least, a circunstância de ter morrido aos 34 anos em consequência de ter caído de uma bicicleta, tudo contribui para o mito. Coligindo textos publicados na imprensa com inéditos, Todos os Caminhos Estão Abertos é o relato de uma viagem ao Afeganistão, entre 1939 e 1940, na companhia de Ella Maillart. As duas partiram de Genebra no carro de Annemarie e só a eclosão da Segunda Grande Guerra abreviou a aventura. No fatídico 1 de Setembro de 1939 estavam em Herat, sem saber do estado do mundo. A reportagem não está isenta de ironia. Annemarie não poupa na invectiva aos hábitos ocidentais, em especial britânicos, parodiando o seu (deles) formalismo por oposição à frugalidade adoptada por si e pela companheira: «nós viajámos sós, sem boy nem chauffeur e, até mesmo, sem gentleman.» A consciência da vaga nazi está presente na narrativa, em particular durante a travessia da Áustria. Apesar da empatia demonstrada pelas tribos afegãs, o tom é objectivo, quase neutro, porém “fotográfico”. É curioso verificar como a Cabul daqueles anos em pouco difere da Cabul descrita na actualidade. Mas tudo acaba em Port Said, no Suez. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Prantos, amores e outros desvarios, de Teolinda Gersão (n. 1940). Seria pleonástico insistir nos recursos discursivos da autora, patentes nos romances e contos que publicou a partir de 1981. A recente atribuição do Prémio Vergílio Ferreira, distinguindo o conjunto da obra, é um corolário justo. Catorze contos dão corpo a esta colectânea que assinala a sua passagem para o catálogo da Porto Editora. Numa escrita que flui com naturalidade, Teolinda narra episódios prosaicos com aparente displicência. Na realidade, esse universo “normalizado” não está isento de violência. Descrito num tom cordato, o quotidiano das pessoas comuns apresenta-se como o conhecemos: um labirinto de interditos. Traços distintivos que Teolinda manobra com exemplar eficácia: rigor vocabular, mordacidade, ausência de ênfase ou delíquio sentimental. Quase sempre histórias de mulheres da actual classe média urbana. A excepção é Alice in Thunderland, que fecha o volume. É o conto mais extenso, e afasta-se do imaginário precedente. Teolinda faz com ele a close reading da obra mítica de Lewis Carroll. Não foi a primeira nem será a última a ficcionar os recessos do reverendo Dodgson, mas, em português, ninguém escavou tanto. A tese é simples: Through a looking glass foi um truque. Quatro estrelas. Publicou a Porto Editora.