quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

ELENA FERRANTE


Hoje na Sábado escrevo sobre Escombros, de Elena Ferrante (n. 1943). Chave: «Uma história é antes o precipício das mais diversas experiências, acumuladas ao longo da vida.» Quem o diz é a autora, numa das entrevistas coligidas para a nova edição do livro de 2003 que foi agora reeditado em Itália. Esta versão alargada vem acrescida de duas novas secções: “Tesselas 2003-2007”, intercalando ensaios, correspondência e quatro entrevistas; e “Missivas 2011-2016”, dezassete entrevistas, uma delas de Isabel Lucas. O sucesso planetário do quarteto napolitano (constituído pelos romances A Amiga Genial, História do Novo Nome, História de Quem Vai e de Quem Fica, História da Menina Perdida) deu azo a uma enxurrada de entrevistas para todo o mundo, respondidas sempre por email, tendo Ferrante incluído nesta reedição as suas preferidas. A tradução portuguesa acaba de chegar às livrarias. Longe da exuberância descritiva e da vertigem vocabular dos romances acima citados, bem como daqueles que reuniu em Crónicas do Mal de Amor, a nitidez persiste como regra. Três itens centrais: o direito ao anonimato, a “verdade” em literatura, a defesa intransigente do feminismo. Sobre este último tópico, bem defendido do ponto de vista teórico, faz ouvir uma voz desalinhada: «Temo a linearidade das militâncias, em literatura têm um péssimo efeito.» Aí está um desabafo que não seria possível nos anos 1960. Entretanto, reage com frieza à desconfiança e mesmo hostilidade que o seu anonimato suscita em Itália: «Como se o meu gesto de me subtrair fosse um comportamento ofensivo e digno de culpa.» Clareza desarmante sobre a obra: «Eu escrevo sobre experiências comuns, dilacerações comuns, e a minha máxima obsessão [é ser] capaz de tirar, camada após camada, a gaze que enfaixa a ferida, e chegar à história verídica da chaga.» O princípio não se esgota na epopeia de Elena e Lila. O mesmo tipo de preocupação matiza o diálogo que estabelece com Mario Martone a propósito do guião para cinema de Um Estranho Amor. O filme chocou-a, provocando-lhe «um grande mal-estar», mas a carta de Maio de 1995, inacabada e nunca enviada ao realizador, é um dos momentos altos do livro. Resumindo, Escombros é uma obra decisiva para entender o fenómeno Elena Ferrante. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre António Ferro. Um Homem por Amar, de Rita Ferro (n. 1955), sua neta. Já vi chamar romance a muita coisa, menos a uma biografia. Mas é o que sucede com este livro. Além de cronologia histórica, o volume inclui textos inéditos e mais de duzentas páginas de correspondência do biografado, ou seja, do intelectual modernista que, ironia suprema, construiu a persona de Salazar. Jornalista, escritor, editor da revista Orpheu, director do Secretariado da Propaganda Nacional (1933-50), ideólogo do Estado Novo, impulsionador da Exposição do Mundo Português (1940), fundador do Museu de Arte Popular (1948) e, mais tarde, ministro plenipotenciário (1950-56) em Berna e Roma, António Ferro é uma figura incontornável do século XX português. Verdade que, na primeira parte do volume, Rita Ferro intercala trechos pessoais, mas isso faz parte do protocolo de qualquer biografia. O livro descreve, com minúcia, episódios da vida familiar e profissional, a Política do Espírito, sua mulher Fernanda de Castro, querelas modernistas, as entrevistas famosas (entre outras, com Poincaré, Colette, Mussolini, o Papa Pio XI e Primo de Rivera), perfis de Salazar, políticos e artistas, etc., tudo contextualizado em notas de rodapé. Um ajuste de contas. Três estrelas. Publicou a Dom Quixote.