quinta-feira, 4 de junho de 2015

ALICE BRITO & AQUILINO RIBEIRO


Hoje na Sábado escrevo sobre O Dia em que Estaline Encontrou Picasso na Biblioteca, de Alice Brito (n. 1954). Partindo da premissa de que «A guerra civil espanhola é muito mais que uma guerra contida em fronteiras territoriais», por ter sido palco do «velho e poderosíssimo teatro da luta de classes», a autora põe em pauta as utopias e os equívocos da Esquerda europeia no século XX. A crueza do balanço ajuda a reflectir sobre os sucessivos recuos que antecipam o colapso de princípios e conquistas que constituem património adquirido. Os capítulos das três partes do livro intercalam passado e presente num amplo tour d’horizon que permite ao leitor mergulhar nas vidas de Juan, Sancho, Dulce, David, Josefina, Nuno e, por intermédio deles, perceber melhor as razões do impasse actual. Como no romance anterior, As Mulheres da Fonte Nova (2012), Setúbal volta a ocupar o centro da intriga. Alice Brito conhece bem o terreno que pisa, asserção válida tanto do ponto de vista da sociologia como da ideologia. Tudo começa no turbulento ano de 1921, com a Primeira República a ressacar o descontentamento. De forma hábil, factos concretos vão pontuando a trama novelesca. A título de exemplo, é muito interessante seguir os desaires do partido catalão POUM, sobretudo a partir da ruptura com Trotsky, verificada em 1935. Tal como, noutro ângulo, os anos de chumbo do Estado Novo. O desembaraço da linguagem, com uso recorrente do calão, dá verossimilhança às personagens e à arquitectura discursiva: «Nos primeiríssimos anos de guerra os fascistas apanharam nos cornos.» Depois instalaram-se. A condição feminina, mais do que o feminismo da Vulgata, atravessa o romance. Não podia ser de outro modo: elas também morreram às portas de Madrid, viraram Setúbal do avesso, «chegavam a casa [vindas das fábricas] e limpavam a merda que a casa sempre acumula...» Nenhum proselitismo. A nitidez fere, razão acrescida (a História ensina) para apagar certos retratos. Veja-se o que aconteceu a Picasso quando retratou Estaline. Quatro estrelas.

Escrevo ainda sobre Alemanha Ensanguentada, o diário alemão de Aquilino Ribeiro (1885-1963), um dos “imortais” da Literatura nacional. Antes da Primeira Guerra Mundial, Aquilino viveu uma temporada na Alemanha, país onde casou com Grete Tiedemann, mãe do seu primeiro filho. Foi o conflito europeu que o fez interromper os estudos e regressar a Portugal. Ao arrepio de certo dogmatismo, Aquilino não apoiou a participação de Portugal na guerra. Alemanha Ensanguentada reporta a dois períodos distintos: o ano de 1920, quando regressa a Berlim e reencontra uma cidade ressentida com a paz de Versalhes («desapareceu o alemão amável, pressuroso com o próximo, que falava todas as línguas vivas e mortas...»), e uma digressão pelos campos franceses de batalha, secção datada de 1928. Em Berlim, sente-se desconfortável com o desdém que o cerca. Do outro lado da fronteira, lá onde os exércitos se digladiaram, reflecte sobre factos e circunstâncias: «Não foi debalde que por aqui [Artois] passou e deu leis o génio ibérico, refractário a modernidades.» Em suma, um documento para a História. Publicou a Bertrand. Quatro estrelas.